sexta-feira, 9 de março de 2012

Italo

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Por alguma razão que não entendi ainda, e não sei se algum dia entenderei, não me lembro do fim de Ítalo. Minha lembrança não registrou seus últimos tempos. Parece-me que ele foi retirado de sua casa por iniciativa dos vizinhos, que chamaram o serviço público social da época, ou pela ação 'benfeitora' de algum de seus parentes ou algo assim.

Porque Ítalo, sozinho, certamente há muito tempo não tinha mais forças nem a clareza mínima para cuidar de si mesmo. Nem para comer, nem para tomar banho, nem fazer sua própria higiene. (Como pode ser, tantas vezes, cruel e patética a condição humana?...)

Como a lembrança não preenche esses fatos, deixo a imaginação preenchê-los assim: Ítalo foi recolhido a um asilo público, viveu lá pouquíssimos meses, até morrer de cirrose combinada com um ataque cardíaco.

Não levou pra lá nem seus discos nem suas garrafas de whisky de terceira categoria, nem a incompreensão e a ingratidão dos homens. Só levou para seu fim de vida as lembranças das nossas visitas, de meninos e adolescentes, e as irrelevâncias que nós dissemos e fizemos quando de nossas visitas a ele.

O final de Ítalo, embora hipotético, lembra-me o final de um filme de Lina Wertmuller (Itália,1926), em que o personagem de Giancarlo Giannini (Itália,1942) tenta continuar vivendo, tropegamente e bêbado – como Italo, após inúmeras desventuras, tentando ganhar a vida como um indesejado carregador de malas em um porto decadente de uma cidade obscura.

A última cena do filme termina focalizando Giannini e a imagem vai se afastando, com a câmera subindo, subindo, de modo que o vemos cada vez mais distante e lá embaixo, lá embaixo, tropeçando nas malas e com trejeitos exagerados de serviçal, até que não o vemos mais.

Ele desaparece assim. Com sua imagem apenas desaparecendo. Como se nunca tivesse existido. Como se se tratasse da vida de alguém ao contrário: vista desde a velhice até a infância. Uma trajetória ao contrário: da velhice ao útero, da presença até a ausência definitiva.

Enquanto isso a música cresce. (O cinema sabe revolver nossas emoções! Cenas como essa – e intensificadas com música de fundo – se entranham em nós, para nunca mais as esquecermos!)

No caso de Ítalo, haveria de ser uma música qualquer executada pela Orquestra de Mantovani, que poderia ser acompanhada por um côro de bêbados, soluçantes, fedidos e maltrapilhos, como Ítalo ficou em seus últimos anos, como ele, igualzinho como ele ao fechar os olhos para esse mundo.

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