sábado, 28 de janeiro de 2012

Jota Erre

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Poucas semanas depois, com a família instalada e vivendo na nova casa, J.R. procurou seu padrinho, dentro da fábrica mesmo.

-“Vamos ter mais um menino...”, ele falou, sorrindo aquele sorriso, ao mesmo tempo ingênuo e ardiloso, impossível de lhe ser despregado dos lábios. Especialmente em épocas pré-photoshop.

-“Vocês dois, hem?... parecem coelhos!...”, o padrinho falou, sorrindo sinceramente, tanto quanto o afilhado. E, certamente, lembrando-se de seus tempos de 'coelho' também.

Naquela época a reprodução humana estava mais próxima da reprodução de qualquer outro animal. As mulheres – ao menos da classe social deles – ainda não usavam a pílula anticoncepcional. Que já existia, mas só era conhecida e acessível pelas classes mais altas. Os pobres – ou não necessariamente os pobres, mas os sem-cultura – esses se reproduziam naturalmente, sem controles. Quase como coelhos... Como os pobres de atualmente.

-“Sabe como é...”, J.R. disse, agora com um sorriso abertamente malicioso nos lábios, “a gente gosta!...”, ele completou.

-“Eu também gosto!...”, o padrinho o interrompeu. “Mas não dá prá ficar tendo um filho atrás do outro!”, ele finalizou, adquirindo, enfim, um ar sério e compenetrado, como a ocasião exigia.

-“Mais filhos, menos conforto, mais filhos, menos comida na mesa, menos educação para cada um, menos sossego na vida...”, o padrinho começou a enumerar. Mas parou logo, sem vontade de completar lista tão grande.

-“Agora que o menino já está vindo, trabalhe mais então...”, o padrinho falou, “faça mais horas extras... redobre seus esforços... e, depois dessa quarta criança, durmam todos no mesmo quarto... assim você e sua mulher param um pouco de fazer novos inocentes...”, o padrinho completou, entre risonho, irônico e severo. Ele era uma mistura de tudo isso.

E assim foi. J.R. aproveitava todas as oportunidades para fazer horas extras, redobrou, triplicou seu esforço... só faltou tomar a providência anti-natalidade de colocar todos prá dormirem no mesmo quarto. Esse esforço ele não conseguiu implantar, pelo menos naquela temporada.

Um pequeno problema pairava pendente, entretanto. Qual sobrenome dar àquele filho a mais. Ele iria usar seu segundo nome, o ‘R’, como sobrenome de mais um filho? Não era o que ele queria... mas era um problema ainda não resolvido.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Galileu

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Embora fictícia, uma passagem pode exemplificar bem quem foi Galileu. A peça de Bertolt Brecht (Alemanha,1898-1956), A vida de Galileu, tem a seguinte cena: o Papa da época estava sendo paramentado por seu criado, após o banho. No início, o Papa está nu. Seu criado lhe diz (cito sem consultar o texto da peça):

- “Vossa Santidade deve ter ouvido falar sobre o que anda dizendo Galileu...”

- “Ah, Galileu?!... eu o conheço desde criança!”, responde o Papa, “Galileu sempre foi assim mesmo... gosta de falar!”

Neste momento o Papa já está vestido, mas só com suas roupas de baixo.

- “Mas desta vez, Vossa Santidade... Vossa Santidade há de concordar... Galileu tem conseguido maior repercussão sobre suas idéias...”, o criado continua.

- “Não se importem muito com Galileu...”, o Papa diz, “eu vou chamá-lo aqui para ter uma conversa com ele.”

- “Ele tem afirmado que a Terra não é o centro do Universo... veja Vossa Santidade...”, o criado continua.

- “Galileu não é mau, é só um tanto irresponsável...”, afirma o Papa, recebendo seus paramentos externos. Neste momento só lhe falta a mitra papal.

- “O povo está preocupado com isso!”, diz o criado ao Papa, no exato momento em que coloca a mitra papal em sua ‘santa cabeça’.

- “Chame a Guarda!... Prenda Galileu!!!”, o Papa declara, convicto, já totalmente paramentado como e investido de sua figura de Papa.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Trecho de "Ser mulher"

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Quando nasce uma menina, voltando ao assunto mulher, é um momento mágico: é uma menina dando a luz à outra! É uma semente que se abre para dar vida à outra. É uma semente que se abre para expor à natureza outra semente que havia dentro dela. É um elo forte que se estabelece e se repete: é a passagem da vida de uma mulher para a vida de outra mulher. De outra mulher, que passará a vida adiante para outras mulheres. É como uma estrela que explode e que traz dentro de si outras incontáveis estrelas, que um dia explodirão e que, continuamente, conterão outras estrelas dentro de si...
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No meio dessa sucessão de elos, é natural que também nasçam homens, mas a essência da passagem dessa chama, dessa luz - como se fosse uma chama olímpica da vida, como se fosse a luz que faz existir luz e que faz existir a vida... - a essência desse mistério profundo que é a vida, desse imensurável e indecifrável mistério que é existir vida, a essência da vida é preservar a mulher para preservar a vida!
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(Esse último parágrafo está impregnado de um sentido mais que filosófico, como se se tratasse de uma mensagem messiânica ou de alguma atitude de adoração. Isso, por um lado, é bom, porque essa sensação faz jus às maravilhas da existência da matéria, do universo, da vida e da inteligência humana. Mas não seria exato se ficasse a sensação de que se está atribuindo aqui tudo a um conceito de ‘divino’. Seria um equívoco pensar de modo tendendo somente para o religioso. Porque não é isso. É maior que isso.)

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Trecho do conto "Ver o mar"

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Minha mãe, e suas vizinhas, todas elas esposas de operários da florescente indústria automobilística do ABC paulista, já haviam preparado sacolas de comida, salgadinhos, empadinhas, bolos e coisas e tal, que já estavam devidamente acondicionados em tigelas, panelas ou apenas embrulhadas nas próprias toalhas que usávamos rotineiramente em nossas casas. Era como o suprimento da caravana que se preparava para partir.
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O dia ainda mal tinha clareado e já havia um forte burburinho nos portões, ao longo da rua; os meninos já desembestavam em correrias sem pódio e sem ponto de partida nem ponto de chegada; as meninas já apareciam, curiosas, arrumadas como se fossem para uma festa; os homens falavam acerca do horário, do clima, das condições da estrada, de futebol, dos preparativos, dos planos de viagens, etc., falavam coisas de homens, porque aquela era uma época em que havia mais sentido em expressões como ‘coisas de homens’, ‘assuntos de mulheres’, etc.
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De repente, o burburinho tornava-se mais forte, o telefone-sem-fio do boca-ouvido-boca comunicava o fato esperado do dia: o ônibus estava chegando! Alguém já gritara da esquina mais próxima à avenida: o ônibus está chegando! O ônibus está chegando! Era um êxtase, um delírio coletivo, uma comemoração de copa do mundo: era verdade, o ônibus estava chegando!
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E o ônibus chegou! Sua silhueta de metal, imponente, seus bancos revestidos de plástico, suas cortininhas cor-de-vinho, seu cheiro de óleo diesel, imponente máquina humana no cenário da madrugada, como se sua chegada fizesse também chegar os primeiros raios de claridade do dia. De algum modo a chegada do ônibus parecia a chegada de um Cavalo de Tróia, por seu mistério e imponência. Mas um Cavalo de Tróia benigno, carregado de amigos e de boas intenções...

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Trecho do capítulo "Infância"

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Para ser bem clichê: nós éramos felizes e sabíamos que éramos! O capitalismo ainda estava em outro estágio. Ainda não abocanhava, mastigava e cuspia milhões de pessoas com a ferocidade de hoje. Os governos eram menos mentirosos e corruptos que atualmente. Os preços não eram manipulados por governos e subiam gradativamente, e os índices de inflação não eram vergonhosamente manipulados para manterem-se baixos, como hoje.
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Nem existia a Receita Federal ainda. Os salários não pagavam, como atualmente, Imposto de Renda. Porque, como o próprio nome diz, eram salários, não eram renda. (A Receita Federal brasileira comemorou quarenta anos em 2009). Pedágios eram raros. Impostos sobre as casas e sobre os carros não eram extorsivos como na atualidade. Taxas e multas eram poucas se comparadas à ostensiva e usurpadora blitz arrecadadora diária, municipal, estadual e federal, que assola os cidadãos brasileiros nas últimas duas ou três décadas.
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Claro que havia parasitas da sociedade, pois esses existem desde o início do Brasil, que vivem de subtrair o dinheiro público para seu uso pessoal, para seu enriquecimento particular, mas, aparentemente, essa praga tinha menores proporções. Não era como hoje, quando milhões de parasitas se apoderam de instâncias públicas municipais, estaduais e federais, manipulam tudo e todos, e continuamente ficam inventando meios de retirar dinheiro de verdadeiros trabalhadores, para promoverem indisfarçáveis farras com o dinheiro arrecadado, e que deveria ser usado para benefício de todos...

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Orange juice, please. No ice!

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Ele estava ali, com seus dez anos, lindo, um homem completo ou ainda um menino muito incompleto (ou ambos), dependendo do quesito que se quisesse avaliar isoladamente. Bem vestido, bem nutrido, com uma carga cultural boa para a sua idade (acima da grande maioria das pessoas de sua idade). Às vezes, aparentemente, absorto num detalhe ou noutro. Difícil dizer.
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Os ecos das aeromoças se aproximavam: coke? beer?... E aquelas vozes se tornavam pouco a pouco mais próximas. Alguns passageiros brasileiros, a maioria dos passageiros, se mexiam incomodados em suas cadeiras. Alguns repassando mentalmente o que iriam dizer, em inglês, àquelas loiras americanas, àqueles americanos de pele bem branca, a maioria de olhos claros. Quando a presença da primeira aeromoça norte americana marcou seu perfil no corredor, a vários metros de nós, e de meu filho, provavelmente no exato instante em que o olhar dela cruzou com o dele, ele disparou em sua direção, fria e rapidamente, como se fosse o vencedor de um duelo de bang-bang: “Orange juice, please!... No ice!”, ele disse, rápido no gatilho.
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Foi como um disparo de arma potente e de alta tecnologia. Seco e certeiro: “Orange juice, please!... no ice!”  E, subitamente o burburinho das pessoas dentro daquela nave cessou. Tudo o mais, a não ser o eco dessas duas frases, virou silêncio... (Orange juice, please! No ice!) E talvez aquele silêncio todo tenha começado na letra ‘o’ da palavra ‘orange’ e se intensificado antes do ‘no’, de modo que a aeromoça, certamente, ouviu a frase inteira, clara e sonoramente, límpida e vigorosamente, tranqüila e soberanamente.
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E não lhe restou alternativa senão dar meia-volta e ir cumprir rapidamente aquela ordem tão clara: Orange juice, please... No ice!!!