sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Prólogo a Filhos

[...]
Ao contrário do Brás Cubas, personagem de Machado de Assis (Brasil,1839-1908), tive filhos. Ele não queria transmitir aos seus filhos o que chamou “legado de nossa miséria”. Eu, no entanto, penso ter transmitido a meus filhos o que concebo ser o “legado de nossa riqueza”, que é a soma de meus esforços, e os de minha esposa, nossos prazeres, dúvidas, desacertos, nossas vontades e estímulos em ser, amar e pensar.

Transmiti a meus filhos algo que sei que é complexo e difícil de realizar e de manter no dia a dia: o desejo de viver bem e em paz. Desejo esse com o qual a situação geral do mundo parece ‘jogar contra’ e bombardear sucessivamente, como que tentando diuturnamente extingui-lo. (Até quando? Até sempre?)

Para nos ajudar e nos motivar nessa luta e nessa busca diária, por outro lado, é bom lembrar, sempre, que o sentido da vida é, certamente, maior do que  imaginamos, é n vezes maior do que o que lhe damos inadvertidamente, quando sozinhos e no dia a dia inconsciente.

Sozinhos, somos muito, muito menores do que os mistérios. Juntos, quem sabe, consigamos aparecer no mapa dos mistérios da vida, ainda que só visíveis a uma pequena distância do mistério observado. (Talvez apareçamos ao microscópio de alguem quando esse alguem estiver observado mistérios ao microscópio...)

Uma possibilidade de entendimento do significado da vida é a idéia – recorrente, durante a vida e no decorrer desse livro – de que ela é uma jornada misteriosa, irreversível e irrecusável, para a qual parte-se com pouco conhecimento e pouco aparelhado para enfrentá-la, mas que se vai adquirindo mais e mais conhecimentos ao longo dessa mesma jornada.

E vai-se ficando, por meio da coleta de mais conhecimentos, cada vez mais aparelhado para enfrentá-la e ser bem sucedido nesse enfrentamento. (É como se fossemos aquele coletor nosso ancestral, que parte com a cesta vazia, e cuja jornada pode ser 'medida' pelo quanto a cesta fica cheia ao longo do caminho.)

Nessa jornada, paralelamente aos outros fatos da vida, ter filhos é um capítulo especial. Acontece até mesmo sem que você perceba inicialmente. É biológico. Acontece biologicamente. Como conseqüência natural de ser, amar e pensar.

Quando acontece o nascimento de um filho, nos primeiros dias ou meses, pode parecer que sua vida não vai mudar muito. Ou que somente vai mudar no início.

Mas isso, é claro, é um engano: sua vida muda para sempre. Muda todas as horas, muda todos os dias. Muda a tal ponto que o fato de ter filhos desloca-se para o centro de nossas preocupações e ocupações.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Separação

[...]
O passado, pertença ele a uma pessoa, a um grupo ou mesmo a um país, assemelha-se a uma enorme tela branca de pintura que existiria às  costas da pessoa, a poucos centímetros dela, que a cada dia fica marcada com os acontecimentos daquele dia, um dia após o outro, semana após semana, mês, ano, etc.

Como se as imagens dos dias fossem sendo arremessadas para trás das pessoas, passando por elas, com força, por uma espécie de vento fortíssimo a ponto de ir retardando seu caminhar, varrendo tudo o que é real, tudo o que é fato e tudo o que é sonho e impregnando essa tela atrás de todos nós com todas as imagens disso tudo!

Uma analogia para isso, para melhor expressar essa idéia, é pensar no processo de silk-screen - em que o artista passa uma tinta grossa através de uma tela, onde está o desenho, tinta essa que, em seguida é transferida para um tecido ou um ladrilho, por exemplo, transferindo o desenho junto com ela.

Porem o processo da vida é mais complexo. Cada dia ele vai pintando sua leve camada e os milhares de dias que vivemos vão formando um grosso relevo na tela atrás de nós, tão acumulado e sobreposto que torna-se impossível de ser lido pelos outros. Só nós mesmos é que temos alguma condição de ler o nosso quadro e variação de nosso relevo.

Portanto, se essa comparação cabe - todas as comparações são cabíveis, ainda que para serem refutadas - é, talvez, mais difícil falar do passado do que tentar falar sobre o futuro! O futuro sempre parece muito mais perscrutável, imaginável, entendível! (Até temos a ilusão de que o futuro é ‘planejável’. Pura ilusão, mas é assim que essa ilusão – e o futuro - se apresentam.)

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

O vendedor de geléia

[...]
Mas, voltando aos anos de 1960, muitos eram os vendedores ambulantes também. Havia o vendedor de raspadinha, no verão. Seu equipamento era um carrinho de mão com um imenso bloco de gelo e vários sabores – artificiais - de frutas que eram misturadas com o gelo raspado e extraído do bloco com uma pequena ferramenta. O vendedor de quebra-queixo, o de pamonha, de biju. Todos com suas especificidades e todos a pé.

Todos caminhantes, andarilhos incansáveis, que pareciam estar vindo do fim do mundo, caminhando sobre a linha do Equador, com destino ao outro fim do mundo, como se o planeta fosse seu chinelo, como se o mundo fosse pequeno, minúsculo, tal como era o planeta do Pequeno Príncipe, de Saint-Exupery (França,1900-1944).

O vendedor de geléia era um velhinho baixinho, com óculos de lentes fundo de garrafa. Não tinha nome. Para nós, nenhum dos vendedores tinha nome. Era apenas o ‘vendedor de geléia’. Sua geléia cobria um tabuleiro que estava dentro de um carrinho de mão - pequeno e velhinho como ele próprio - que tinha um cockpit de vidro: era como se fosse uma vitrine sobre rodas. E ele não apregoava as qualidades de suas geléias. Só buzinava. Como se fosse um Chacrinha – Abelardo Barbosa (Brasil,1916-1988) ao vivo! Ele apenas buzinava. E isso era o suficiente.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Prologo a "Ciência e Conhecimento"

[...]
Tudo o que a espécie humana produziu, no entanto, é bom lembrar também, é muitíssimo recente dentro de uma escala de tempo que considere a idade do Universo – ou mesmo somente a idade da Terra. Para termos uma idéia da seqüencia de surgimento  das coisas, sejam astronômicas, biológicas ou humanas, vale a pena ver o que Carl Sagan (USA,1934-1996) propôs, com perspicácia, e que ele chamou de calendário cósmico.

Ele colocou a origem do Universo, há cerca de 15 bilhões de anos (arredondando para um pouco a mais dos quase 14 bilhões atualmente aceitos), como o momento zero do que seria um ano - de 365 dias de 24 horas - de nosso calendário humano atual; desse modo, e conseqüentemente, cada bilhão de anos corresponderia a 24 dias no calendário proposto, e cada segundo corresponderia a 500 anos.

De acordo com esse calendário, a primeira forma de vida na Terra teria surgido somente no dia 25 de setembro. Os primeiros seres humanos, nossos ancestrais diretos, teriam passado a existir somente a partir das 22:10 h do dia 31 de dezembro (o que dá 110 minutos – os minutos que faltam para terminar o ano - vezes 60 segundos por minuto vezes 500 anos por segundo = 3.300.000 anos); o primeiro alfabeto teria surgido às 23:59:51 (há aproximadamente 4.500 anos, portanto); a primeira metalurgia e a invenção da bússola teriam surgido somente quando havíamos atingido as 23:59:53 (há algo como 3.500 anos).

E o agora de nossa vida humana na Terra, com o nosso nível de ciência, tecnologia, e todos os nossos poderes (de ciência, tecnologia, artes, transportes, poder de construção, de destruição e tudo o mais) corresponderia ao primeiro segundo do segundo ano desse calendário!

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Boldrin

[...]
-“O Boldrin faltou...”, uma aluna falava prá outra, logo no início da fila que começava a se formar. Mas sua fala foi interrompida por outra voz mais poderosa.

-“As aulas estão suspensas hoje...”, comunicou, do mini-palco elevado, o inspetor de alunos, logo que os meninos e as meninas aglomeraram-se no pátio para a formação da fila de entrada. Nos cursos primários da rede pública de então, a entrada em sala era sempre precedida pela formação das filas das turmas no pátio. Uma vez perfilados, cantava-se o Hino Nacional. (Quase todos pareciam acreditar na propaganda oficial de que éramos 'o país do futuro'. Daí certos comportamentos serem comuns, e hoje, que chegamos ao futuro, terem rareado...) 

Em seguida, todos subiam para suas salas, formando um trenzinho mirim, com vagões novinhos, de apenas oito anos cada, estridente e feliz, todos com a mesma blusa azul-marinho por cima, camisa branca de mangas curtas e a peça inferior cinza para ambos. Calças compridas para os meninos. Saia – até os joelhos – para as meninas. O mundo parecia bom prá eles, que eram crianças.

Se o mundo não parece bom prá uma criança, vai parecer bom prá quem? Tudo ainda era relativamente simples, ao menos se comparado ao mundo atual. A corrida espacial engatinhava. O mundo se globalizava. O rock’n’roll era adolescente. A política nacional, como sempre, chafurdava.

Todos eles eram crianças, eram e estavam crianças, vivendo esse ínterim de idade mais autêntico da vida das pessoas. (Não só das pessoas. Na verdade, até para a maioria das espécies animais a infância é divertida, agitada, irresponsável. Um período em que se é protegido, que se trabalha menos, que se caça menos. Até porque criança não persegue e mata. Nem para comer...)

-“Só vamos cantar o Hino, mas, em seguida, a professora da turma do Boldrin vai levar os alunos dela até a casa dele... as outras turmas estão dispensadas!”, o inspetor continuou informando.

-“Que que aconteceu?...”, era o que alguns perguntavam na fila. Antes que se tivesse tempo para responder, ele mesmo veio com o triste esclarecimento.

-“A mãe do Boldrin morreu!...”, completou o inspetor, descendo do mini-palco, sem pausas, tanto no caminhar quanto na frase e só deixando para respirar nas reticências, após o ponto de exclamação.